2003
Na exposição da artista de 02 de julho a 31 de agosto, ao fundo da sala de exposições, uma parede nos convida a entrar. Mais que isto? Ela quase nos puxa, impondo-nos seu enigma: imagens sugestivas nos lembram ora as lâminas do Teste de Rorschach, ora radiografias do corpo feminino, ora… De perto, frente a frente, nos deparamos com fotos de sacos de caju – muitos. Pensamos a princípio isto: sacos plásticos brancos, cheios de cajus amarelos, avermelhados, vermelhos. E, apurando nossa atenção, percebemos que se trata de uma única foto, repetida muitas vezes.
Por aí, começamos a conhecer o trabalho de Rochelle Costi, fisgados por sua lógica de apreensão do mundo, convocados que somos a dela participar. Porque é assim que funciona: a artista intervém o tempo todo em seu trabalho e nele nos implica – seja através da repetição, que acaba por engendrar um novo; seja através da escolha do material de impressão, escolha precisa em sua intenção de causar naquele que olha o desejo de tocar; seja no tamanho ou na disposição do trabalho, ela está o tempo todo lá e, no entanto, de repente, desaparece! E somos nós, então, que lá nos encontramos, perdidos em indagações, divagações, em lembranças e sonhos, em um êxtase diante da beleza inusitada – e, contudo, óbvia – do dia a dia.
O tempo e o espaço: eis duas categorias que atravessam o trabalho de Rochelle. Categorias fundamentais em nossa constituição de sujeitos humanos, sem as quais nossa humanidade se perderia na continuidade com a natureza. Talvez seja este aspecto de seu trabalho que nos toque tão intimamente, o fato de ela operar com esse descolamento da natureza, colocando em destaque o enquadramento da fantasia que nos estrutura, nos coloca desde sempre em seu trabalho; no distanciamento dado pela imagem, somos por ela apreendidos e nela nos reconhecemos.
Nos copos de colorau, em sua composição com sacos de plástico amarelo, e na pintura do carrinho do pipoqueiro, com sua singeleza provinciana, ganha o estatuto de obra; por tocar precisamente em algo que nos escapa, mas que nos constitui: a estrutura de quadro que nossa realidade possui. E nas casas: a casa cega de um tempo sem lembrança de nossa cidade, casa desprovida de sua função, obturada em seus buracos, tornada estéril na troca com o mundo, triste monumento de um tempo que não quer se saber; a casa de praia, barraco colorido à beira do mar da Redinha, bela em sua composição, potente em sua precariedade, ainda delimitando um espaço humano, viva em sua função de abrigo e de morada.
Essa pequena mulher de olhos luminosos, que pousa seu olhar generoso sobre recortes do real nos entrega, nos devolve algo que é da ordem de uma preciosidade…
A exposição de Rochelle Costi é um presente para os sentidos – sensações, significados, sentimentos. É um presente para a cidade de Natal, fruto de suas perambulações pelas ruas, feiras e praias da cidade. Simples, naquilo que o simples aponta, sempre para uma urdidura, extremamente sofisticada. Majestoso com a combinatória de cores e texturas, joga com uma estética espontânea, que é apreendida e reconstruída em seus elementos mínimos e fundamentais, trazendo a marca, o traço da artista.
Rochelle diz que quando está pesquisando algo, esse “algo” se joga na sua frente. Picasso dizia algo semelhante ao enunciar “eu não procuro, acho”. Há algo do desejo desses dois sujeitos que se fazem ordens, um desejar que se realiza aos olhos do artista e que se faz matéria de seu trabalho. Talvez nisto resida o presente maior que nos é dado através de sua obra: o desejo da artista se faz nosso e nos sentimos mais ricos, mais humanos ao podermos apreender a realidade com outros olhos…
Liane Barros