2005
Eu caminhava pela sala sem saber direito para onde me dirigir primeiro. Não sei se pela timidez ou pelo simples fato de não saber por onde começar. Foi quando eu senti aquele olhar, puxando-me. Chegando mais perto, pude perceber que o chamado era calado e tímido, como eu fico quando me encontro diante de tantas pessoas, circulando, conversando, debatendo. Mas, de repente, o que era incerto ficou claro por alguns instantes. O olhar podia me entender, me perscrutar, me ignorar e até zombar de mim.
Era eu mesma ali, muito embora não tivesse certeza de nada… Então me calei diante dele. Como ele fazia consigo mesmo, com uma boca fechada num fino traço. Ficamos ali parados diante de nós mesmos. O silêncio pairando nas paredes da enorme sala. Não era preciso muito para sentir o movimento das coisas inertes ou a cor da respiração tranquila e a poesia solfejando em meu ouvido.
Fixar o olhar numa obra, num autorretrato, transcende a simples visão. Quando se olha o olho, o nariz, a boca, a orelha daquele outro, o espectador sai de seu estado de imaginação reprodutiva e passa a produzir sua própria e intrínseca leitura da obra. Essa é uma das funções da arte. E é o que acontece quando nos deparamos com a “experiência” de se autorretratar do artista plástico Mauro Piva, 27 anos, carioca, radicado em São Paulo.
A ação inerente do artista de – seja em que fase ele esteja na produção de sua obra – se autorretratar poderia ter dois significados elementares: aquele de se mostrar e, em se expondo, entregar um pouco de si ao outro (este, ávido, muitas vezes, por observar, especular e sentir); ou se reconhecer, de algum modo transparente, imperfeito. Humano.
A exposição que traz dois óleos sobre tela, com atenção para o detalhe da orelha e os oito desenhos em lápis de cor, que está exposto pela primeira vez na Casa da Ribeira, nasceu da inquietude da imagem de uma orelha, sendo esta o fator catalizador reflexivo motivacional que, adicionado a admiração pelo angustiado e conturbado e, sem dúvida, um dos mais expressivos artistas plásticos do século XIX, o holandês Vincent Van Gogh, culminaram nas “releituras” dos autorretratos de Van Gogh.
Nas obras anteriores de Piva, a identidade de suas figuras não era revelada, não havia rostos nem nenhuma característica que pudesse identificar os personagens retratados, embora procurasse sempre retratar o dia a dia das pessoas com as quais convive, suas vidas conturbadas e as angústias do homem contemporâneo.
É a primeira vez que ele desenha rostos. Digo “rostos” porque a cada quadro, a cada olhar, talvez o espectador tenha um encontro, uma identificação subjetiva, mas nem por isso diáfana – consigo mesmo, com suas próprias angústias e possa, por alguns instantes, deparar-se com sua própria imagem, a partir do outro. E essa é outra função da arte.
Sheyla Azevedo (jornalista); Colaboração: Mauro Piva.
Obs: A exposição ficou em cartaz na Casa da Ribeira de 1 de março a 24 de abril de 2005.