2004
Localizar as esculturas de Eduardo Frota como recorrentes dos caminhos percorridos pela arte moderna, especialmente após o Cubismo, assim como pela geração minimalista e pós-minimalista, seria restringir as questões que elas abrangem. Tomá-las meramente pelo seu caráter formal, constituiria-se noutra limitação.
A ênfase no rigor técnico-formal empreendida por Frota – em que se mescla o exercício do artista com o do artesão, do arquiteto e do engenheiro – na construção de formas cilíndricas, orgânicas e, muitas vezes, monumentais, revela a necessidade de enfrentamento do real, no caso, a arquitetura, valendo-se dos seus recursos tectônicos. Contudo, a organicidade de suas estruturas (esculturas) que invade e contamina o real (a arquitetura) oferece ao sujeito a experiência de um novo espaço, de uma nova realidade, ao romper com a ortogonalidade do espaço original.
Suas obras, de site-specific, incorporam a memória do lugar. Neste sentido, trata-se de esculturas interventivas, expostas de 10 de novembro a 22 de dezembro, cuja poética está voltada para a sensibilização do sujeito frente à realidade.
A relação entre a obra (a arte) e a arquitetura (o real) tem sido especialmente tratada desde a década de sessenta, quando pudemos observar uma interação entre os vários meios técnicos e seus respectivos espaços gerando uma arte híbrida. O diálogo que Frota estabelece entre a escultura e a arquitetura está relacionado a uma questão contemporânea, cujo enfrentamento deu-se também na pintura, na fotografia e em tantos outros meios.
A reflexão entre a arte e a realidade, podemos observar, confere à obra uma dimensão filosófica que a coloca no plano da existência. Suas esculturas, com seu incessante diálogo com o real, oferecem ao sujeito uma experiência temporal, à medida que o impulsiona à captura e ao reconhecimento de uma nova realidade. Através de um de-morar-se (como nos fala Heidegger), i.e., de um exercício de temporalização do espaço; o artista nos confronta com uma experiência contrária às esculturas cubistas e seus desdobramentos (aquelas como fragmento do mundo) ou minimalistas (aquelas que apelam para a presença do sujeito, mas que, paradoxalmente, existem autorreferencialmente), à medida que suas esculturas interventivas, ou como diz o artista, “esculturas de passagem”, fazem valer o entorno, num exercício de quase-anulação de si mesmas.
Esta quase-anulação faz-se pelo seu caráter construtivo, tectônico, que as concilia com a arquitetura. Contudo, tal conciliação não impede que suas esculturas tornem os espaços obstruídos e ofereçam a reflexão sobre a suposta funcionalidade da arquitetura. A poética do trabalho de Frota está fundada na relação sujeito/obra que ocorre no reverso da escultura, i.e., o entorno como ‘avesso’ da escultura constitui-se como obra fenomenal que lida com o deslimite e a extensão.
Sua obra ‘A Casa’, montada na Casa da Ribeira, em Natal, aparentemente diferencia-se das demais obras do artista. Trata-se de uma intervenção (mais próxima de uma instalação do que de uma escultura) que divide o espaço com paredes de madeira, portas com dobradiças que se abrem e se fecham para ambos os lados e com o piso coberto de britas. Comparadas às esculturas anteriores do artista, podemos observar, em comum, a afirmação do ‘espaço-fora’ como poética da obra, i.é., o trabalho do artista como veículo para exercer-se a “experiência da existência”, segundo suas palavras. ‘A Casa’ não é um labirinto que oferece um lugar de chegada, que estabeleça uma conclusão. Segundo Frota, “percorrer o trabalho não é chegar, mas perder-se”, dilatar pela experiência da passagem, da temporalização do espaço, do de-morar-se no lugar, as limitações impostas pelo cotidiano. Entrar na ‘A Casa’ requer o desvelamento do espaço, fazer opções, empurrar, abrir, adentrar, escutar (os nossos e os outros passos revelados pelas britas no chão), tornar real nossa experiência, assim como a própria obra.
Apesar do apelo sensorial que a obra suscita – não podemos deixar de compará-la com algumas abordagens de Ligia Clark e Hélio Oiticica. ‘A Casa’, na verdade, coloca questões relevantes que faz superar esta leitura: a prática de uma subjetividade que podemos interpretar como uma espécie de resgate do humano. Se a arte do humanismo estava fundada no plano da consciência, o mesmo podemos observar nesse trabalho de Frota. Tal intervenção não lida com o resgate da ‘memória do corpo’, muito menos com o exercício das sensações daquele que a experimenta, ao contrário, exige do sujeito participação ativa e consciente que faz atualizar o espaço e o tempo presente. A experiência mental e temporal prevalece às sensações que podemos obter através da obra, sem as excluir.
O exercício dos domínios lógico e ético na prática artística de Eduardo Frota confere uma condição de humanismo que caracteriza sua produção, assim como a de tantos outros artistas contemporâneos relevantes, constituindo-se como um sintoma da arte atual. Especificamente no caso de Frota, sua conduta lógica e ética está condicionada à sua poética; o artista insere nas suas questões a artesania (a mão do homem), a monumentalidade (a experiência para o homem) e tudo aquilo que não interessa ao mercado, visto que compromete a viabilidade da obra como produto.
Salvo as diferenças formais e poéticas, podemos localizar na arte atual o resgate de um humanismo pela presença do sujeito como elemento central e preponderante da obra, mesmo que isto custe à obra-objeto um papel secundário, ou, de outro modo, que a obra passe a se constituir pelo seu reverso em prol da experiência subjetiva. No caso de Frota, pelo reverso da escultura.
Zalinda Cartaxo.