2003
Pelas ruas, os caminhantes errantes ou não, cegos ou não, no caminhar imprimem marcas na pele do chão. São estranhos desenhos que se formam por esses passos alheios, no rumo certo ou incerto da constrangedora incerteza cotidiana. É nessa relação (passos e pedras) que Selma interfere. Coloca em espaços públicos papéis no chão. Após alguns dias, ao retirá-los, a artista captou ali manchas que são memórias roubadas dos caminhantes. Nas manchas, imperfeitas, o inacabado está impregnado de devaneios petrificantes que ligam o efêmero e a memória, a matéria e o sonho, os homens e as pedras.
Selma em alguns momentos recua e permite que em alguns fragmentos do espaço do papel essas manchas respirem livremente, até porque sua interferência já ocorreu, quando teve a ideia de colocar o papel no chão para ser pisado. No segundo momento, ela joga com tons sobre tons, criando metáforas de uma poética luminosa sobre as manchas. Ela liberta, interfere e aprisiona as marcas dos caminhantes. Busca no decalcar dos passos dos homens, sua poética, seus sonhos, suas imagens e (re)significação como traços itinerários do tempo. Procura, assim, o significado pleno de nossa existência transitória no mundo e desnuda-se o bastante para comungar com as palavras da poeta Zila Mamede: “Da pedra ao reino/à pedra o apego/ do fogo ao jogo/ na pedra em que me perco/ Da pedra ao posto/na pedra o rosto/ na pedra o porto:/canto não horto.
É sobre esse duplo aspecto de tensão que a obra de Selma agora se apresenta. Por entre as ruas, nos passos, nas pedras, nos tons, a artista tece a sua obra, prestes a desencantar com o sopro de uma corneta de anjo, imagens nascidas pedras e que nos moldes de Sísifo, vai refazendo infinitamente seu trajeto. Selma Bezerra abriu seu trabalho ao público na data de 7 de maio a 29 de junho de 2003.
Ângela Almeida.
Abril, 2003.